Crianças começam cedo a usar a internet em celulares e outros aparelhos (Foto: Reprodução/EPTV) |
Crianças que têm acesso a eletrônicos, como
celulares e tablets, na hora de dormir, estão sujeitas a desenvolver uma série
de problemas de comportamento e de saúde.
Uma pesquisa do King's College,
de Londres, reuniu dados de 125.198 crianças e adolescentes entre 6 e 19 anos
de idade, em diversos países, e detectou efeitos negativos do uso do aparelho
no período de descanso em diferentes graus de gravidade. Os pesquisadores
verificaram de má qualidade do sono a doenças como obesidade e depressão
infantil.
E não são só pesquisadores e pais
que têm se preocupado com o assunto. Neste fim de semana, dois grandes grupos
de investidores com US$ 2 bilhões em ações da Apple pediram, em carta aberta,
que a empresa desenvolva softwares que limitem o uso de smartphones por
crianças. Os acionistas citam justamente estudos mostrando o impacto negativo
do celular e das redes sociais em excesso na saúde física e mental dos jovensa
para justificar o apelo. A Apple ainda não respondeu a eles.
Impactos
O modo como os jovens têm usado a
tecnologia têm sido diversos e cada vez mais intenso, segundo o estudo do
King's College. E, para cada uso, há variados impactos gerados na vida deles.
A médica Roberta Magalhães, no
Rio de Janeiro, quase todos os dias precisa chamar a atenção da filha Roberta,
de 9 anos, para desligar o celular na hora de dormir.
"Com certeza atrapalha. Ela
fica horas navegando na internet, no Instagram, WhatsApp, Musical.ly,
assistindo vídeos no YouTube. Depois demora a dormir. Fica rolando na
cama", conta.
Roberta diz ainda não ter
observado impactos negativos na rotina, mas observa atentamente: "Se
interferir, tiramos o celular na hora."
Na casa da professora carioca
Rovana Machado, a situação na hora de dormir não é diferente com o filho Theo,
de 14 anos. "Ele fica fissurado olhando a tela. Acho que atrapalha
bastante e, quando vejo, mando desligar, mas adolescente é fogo. Fazem as
coisas escondidos e temos que repetir mil vezes."
Além dos efeitos sobre o sono e a
propensão a desenvolver doenças, os pesquisadores mostraram que deixar o
celular ou o tablet no quarto das crianças, mesmo que eles não os utilizem,
também afeta o período de descanso. A mera expectativa de receber mensagens nas
mídias sociais deixava as crianças e adolescentes em estado de alerta.
"Esse tipo de estudo endossa
o que as pessoas de bom senso já sabiam. Os eletrônicos dão uma sossegada nas
crianças por um tempinho mas, no médio e longo prazo, são muito ruins para o
organismo", observa o neurologista Leonardo Ierardi Goulart, médico especialista
em doença do sono do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, onde também recebe
crianças e adolescentes com problemas de sono e relatos de uso de eletrônicos à
noite.
O estudo do King's College
observa que o distúrbio do sono na infância é conhecido por causar danos à
saúde mental e física. Isso incluiria obesidade, queda do sistema imunológico,
crescimento atrofiado e problemas mentais como depressão e tendência suicida.
Em 2016, um estudo da Sociedade
Real para Saúde Pública (RSPH, na sigla em inglês), na Grã-Bretanha, foi além e
alertou que dormir pouco ou mal é um dos fatores que levariam a doenças graves
como câncer e ataques cardíacos.
A importância do sono
Para a neurologista Anna Karla
Smith, do Instituto do Sono, de São Paulo, o descanso é tão importante para o
desenvolvimento e bem-estar da criança quanto a nutrição e a atividade física.
"O sono é um estado em que
há uma série de processamentos, onde há a fabricação de alguns hormônios muito
importantes para o corpo", comenta a médica à BBC Brasil.
"Nas crianças existe o GH, o
hormônio do crescimento, essencial para o desenvolvimento do corpo. Esse
hormônio é liberado durante o sono profundo que a criança entra poucos minutos
depois de adormecer. Nessa fase há o pico de sua fabricação."
A neurologista explica que se a
criança vai dormir tarde, por exemplo, os hormônios ainda serão liberados, mas
de maneira antifisiológica. "Ela está indo contra a sua natureza. A
quantidade de hormônio do crescimento produzida pode ser pouca ou até
inexistente em casos extremos se houver patologia. A própria distribuição do
hormônio do crescimento estará alterada ao longo do dia", explica a
especialista.
A liberação de outros hormônios
também é prejudicada, segundo a médica, já que em diferentes etapas do sono há
a produção da leptina (hormônio da saciedade), do cortisol (que ajuda a manter
estabilidade emocional, controla inflamações e alergias) e do TSH (estimulador
da tireóide).
Como o uso de eletrônicos
atrapalha?
O uso de eletrônicos atrapalha o
sono, em primeiro lugar, porque o simples fato de ligar o celular ou tablet
para brincar com um jogo faz com que a criança, por exemplo, atrase sua hora de
ir para cama e durma menos.
Em segundo lugar, diz o estudo da
King´s College, o conteúdo pode ser muito estimulante - e gerar uma excitação
que atrase o início do relaxamento.
Em terceiro lugar, a forte luz
emitida pelas telas dos dispositivos gera um impacto no corpo, afetando o
relógio biológico e a percepção do cérebro do que é noite ou dia.
A chamada "luz azul" já
foi alvo de diversos estudos nos últimos anos. O mais recente, da Universidade
de Haifa, em Israel, constatou que a luz azul, presente nas telas de celulares,
tablets e computadores, inibe a secreção da melatonina, o hormônio que avisa o
nosso corpo que está na hora de dormir.
O organismo também não ativa seu
mecanismo natural que reduz a temperatura corporal. O normal é que a
temperatura do corpo caia durante a madrugada e volte a subir quando estamos
prestes a despertar. Isso, contudo, não ocorre se o cérebro recebe a mensagem
que ainda estamos em estado de vigília.
"O estímulo biológico para o
sono fica prejudicado pela luminosidade. Porém o problema não é só a luz, mas
também pensar em um monte de coisas, condicionando o momento do sono com a
execução de tarefas sociais. Talvez isso atrapalhe mais do que a luz",
observa o neurologista Goulart.
Luz azul x luz vermelha
A luz branca azulada emitida
pelas telas de dispositivos eletrônicos prejudica a duração e, principalmente,
a qualidade de sono - ao contrário da luz branca avermelhada que não causa
interferência no organismo.
Esta é a conclusão de uma
pesquisa realizada pela Universidade de Haifa, em Israel, e pela Clínica do
Sono Assuta. Pela primeira vez, foi feito um estudo comparativo entre os dois
tipos de luminosidade. Para isso, foram usados filtros que bloqueavam a luz
azul e depois a vermelha.
"A luz emitida pela maioria
das telas é azul e danifica os ciclos do corpo e nosso sono", explica o
professor Abraham Haim, um dos autores da pesquisa. Embora o olho humano não
consiga identificar todos os espectros da luminosidade nas telas, o cérebro
capta o tom azulado.
A neurologista Anna Karla Smith,
do Instituto do Sono, de São Paulo, diz que levantamentos como esse comprovam
que a exposição à luz azul suprime a produção de melatonina, o hormônio que
avisa o nosso organismo que está na hora de dormir.
"Quanto mais próximo aos
olhos, pior. Recebemos mais luminosidade o que desregula o nosso ritmo
circadiano, de sono e vigília", explica à BBC Brasil a neurologista, cujos
pacientes, em sua maioria, relatam usar eletrônicos na cama.
Prejuízos
De acordo com a neurologista, no
curto prazo, os "prejuízos, às vezes, não são perceptíveis". Mas a
falta de sono "pode interferir no rendimento cognitivo porque o
processamento de memória, que ocorre na segunda metade da noite, provavelmente
não aconteceu ou não aconteceu de maneira satisfatória".
"Em curto prazo, pode afetar
a consolidação de informações recém-aprendidas porque vai ter um sono mais
superficial, mais fragmentado e não reparador", afirma Leonardo Ierardi
Goulart, médico especialista em doença do sono do Hospital Albert Einstein, em
São Paulo.
Ele explica que as atividades
cerebrais que assimilam os conhecimentos adquiridos durante uma aula, por
exemplo, ocorrem durante o sono profundo. É nesse momento que o cérebro
processa, revisa e armazena a memória.
Em longo prazo, porém, os riscos
são maiores. "Não é uma insônia, de dois, três, seis meses", destaca
Anna.
No longo prazo, ela explica, há
uma "bagunça de hormônios" que controlam, por exemplo, a saciedade.
Se não produz esse hormônio, a leptina, cuja liberação ocorre ao longo da noite
e no início da manhã, o indivíduo vai comer mais, podendo ficar obeso e
diabético.
Problema é mais sério no longo
prazo
Mas é no longo prazo que as
consequências se tornam mais sérias. "Pode gerar insônia. A pessoa fica
condicionada àquele ambiente de alerta e daí, mesmo que ela vá para cama sem
celular ou iPad, o cérebro acha que aquele é um lugar de vigília e não de
descanso", diz Goulart.
Indivíduos que têm ciclos de sono
distorcidos, que ficam acordados de madrugada e acordam à tarde, por exemplo,
possuem imunidade baixa, segundo a neurologista Ana Karla Smith. "Há
estudos que relacionaram mulheres que trabalham em turnos à noite com maior
incidência de câncer de mama", conta a médica.
Em quadros mais graves de
distúrbios do sono, o desequilíbrio hormonal é ainda maior o que,
consequentemente, leva a quadros de saúde mais graves como doença
cardiovascular, AVC, obesidade, depressão, entre outras.
Cansaço e mau humor
Na pesquisa da Universidade de
Haifa, 19 voluntários, entre 20 e 29 anos, participaram sem saber qual era o
objetivo do estudo. Na primeira fase, durante uma semana eles usaram um
actígrafo, pequeno aparelho que possibilita obter informações sobre os horários
em que uma pessoa dormiu e acordou. Em um diário eram registrados os hábitos e
qualidade de sono.
Na segunda parte, realizada no
laboratório da Clínica de Sono Assuta, os voluntários foram expostos a telas de
computadores das 21h até 23h - horário em que a glândula pineal começa a
produzir e expelir a melatonina.
Os participantes ficaram em
contato com quatro tipos de luz: luz azul de alta intensidade, luz azul de
baixa intensidade, luz vermelha de alta intensidade e luz vermelha de baixa
intensidade.
Eles foram conectados a
instrumentos que medem as ondas cerebrais e podem determinar os estágios de
sono de uma pessoa durante a noite, incluindo quando despertam sem notar.
Na manhã seguinte, os voluntários
completaram questionários sobre como se sentiam.
Em média, a exposição à luz azul
reduziu a duração do sono em aproximadamente 16 minutos. Essa mesma luz também
diminuiu de forma significativa a produção de melatonina, enquanto que, com a
luz vermelha, a produção do hormônio ficou em um nível normal.
Danos
Os pesquisadores explicam que os
danos na produção de melatonina refletem no relógio biológico do corpo humano.
Foi evidenciado, por exemplo, que a exposição à luz azul não deixa o organismo
ativar o mecanismo natural que reduz a temperatura corporal.
"Naturalmente, quando o
corpo começa a adormecer reduz sua temperatura, alcançando seu menor nível por
volta das quatro horas da madrugada. Quando o corpo volta para sua temperatura
normal, acordamos", explica Haim.
"Depois da exposição à luz
vermelha, o corpo continuou a se comportar normalmente, mas exposto à luz azul
ele manteve sua temperatura normal à noite - o que evidencia danos ao nosso
relógio biológico."
Foi ainda observado que com a luz
vermelha em ambas intensidades as pessoas acordaram, em média, 4,5 vezes. Na
luz azul de baixa intensidade, foram 6,7 vezes, enquanto que, na alta
intensidade, foram 7,6 vezes que despertaram.
No dia seguinte, os voluntários
relataram terem sentido mais cansaço e mau humor após a exposição à luz azul.
Como proteger os olhos: lentes
especiais, aplicativos e até vitamina
Para combater a luz azul, já
foram lançados óculos com lentes especiais e aplicativos eletrônicos que
alteram a cor da luz das telas. Na Austrália, a empresa Caruso's Natural Health
lançou até uma vitamina que diz proteger os olhos da luz azul.
A eficácia, no entanto, não foi
comprovada cientificamente.
G1/BEM ESTAR
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